sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Como em um velho "clichê"... (2)

Quanta poeira poderia se acumular em uma janela de um transporte público? A resposta é: Muita.
Por algum tempo,  Clarisse ficou observando o vidro empoeirado, ele impedia que o vento chegasse até sua face."Por que os ônibus precisam ser tão fechados?" ela começava com as perguntas novamente. "Talvez pela alta velocidade, ou  porque, os pulmões dos passageiros não aguentariam a fumaça." Ao certo ela não sabia. Mas se pegar falando consigo estava virando uma rotina assustadora. Apesar disso,ela gostava, talvez só Clarisse pudesse entender suas perguntas,que vinham do nada e não esperavam respostas. 

Ela estava rígida, mirando os carros que corriam. Ela queria virar para o lado, mas preferia seguir a regra do "quero, devo e posso"."Eu quero virar para o lado! Eu posso! Mas nem de longe devo". Para acanhados como Clarisse, uma troca de olhares era a gota de hidrogênio que acionaria uma bomba hormonal. E ninguém iria querer ver essa explosão.

O ônibus parou, mais gente girando e girando a roleta. O garoto do bloco de anotações se pôs de pé, dando seu lugar a  senhora que carregava uma bolsa marfim e uma carranca no rosto. " Obrigado!" disse ao jovem, que agora se apoiava nas barras de ferro, "surfando" no tráfego caótico.
Depois de minutos, a anciã começou a falar sobre o tempo, o quanto estava chuvoso e ruim para estender as roupas. Clarisse sorria educadamente e concordava pensando : Conversas sobre o tempo são tão instigantes quanto comentários esportivos. 
A conversa se desenrolou, e a frase " na minha época" se posicionava no replay. O garoto já estava envolvido no assunto obsoleto, e como Clarisse, somente anuía com a cabeça diante dos argumentos da senhora. Às vezes os dois trocavam sorrisos, fundando um complô "inocente".
... E como eu disse antes, na época da ditadura os bons cidadãos não... Ah! Minha parada. A senhora se despediu com um sorriso. As cortinas se fecharam e era o fim do monólogo.
"Acho que deveriam diminuir o preço das passagens só porque passamos por isso" O garoto comentou enquanto Clarisse dava risada. " Isso é fala recolhida! Acho que ninguém a ouve em casa." Ela rebateu, e era a vez dele de rir. "Nessa caso ponto para nós! Somos bons ouvintes."
Quando conseguiu recuperar o fôlego, Clarisse ficou repassando os contos da velha em sua cabeça, e tirou uma lição valiosa. Mas isso vai ficar para outro capítulo.
"E você ? Com que nome assina? " O rapaz disse de repente. " Clarisse. E você? "  ela perguntou simpática. Ele se levantou e estendeu a mão "William. Foi um prazer suportar todos aqueles contos arcaicos com você, se me permite dizer." Os dois sorriram pelo encenamento exagerado. Ele saiu do ônibus e acenou do lado de fora, Clarisse retribuiu sorrindo. 
 Depois que o garoto desceu, ela não deixou de pensar como aquilo poderia acontecer mais vezes, adorava conhecer gente nova.
Paradas se sucederam, pessoas entravam e saiam. Era incrível pensar que cada indivíduo ali tinha uma história. Alguns estariam bem, talvez tivessem recebido um aumento no salário, ou iriam viajar no próximo mês. Outros poderiam estar tristes, ou brigados com alguém. A maioria apressado, boa parte cansado e um terço ansioso.  Mas dentro daquele automóvel, todos não passavam de passageiros.


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domingo, 19 de janeiro de 2014

Então, foi assim... (1)

   Depois de horas treinando uma partitura arduamente, os dedos de  Clarisse clamavam por descanso. Sua clavícula já suava pelo contato com o abeto* e seu pescoço doía por ter apoiado o violino. Mas tudo aquilo a reconfortava, sinais de cansaço indicavam um bom treino. 
   O clima estava ameno e já era quase meio-dia. Ela guardou seu instrumento e tratou de tomar um banho. A água do chuveiro descia em uma temperatura agradável. Está morninha! Clarisse pensava enquanto fazia movimentos circulares com os ombros tentando se livrar de uma dor trivial.
   À medida que se lavava, ela se perdia. Se deixava ir por pensamentos. Ela relembrava do que tinha lido um pouco mais cedo, daquele capitulo recém postado da história que acompanhava. Era um romance nato, extremamente doce e cativante, que era publicado regularmente em um blog pouco popular.
    O conto a enchia de expectativa. Era comum  Clarisse se pegar pensando no desfecho da história. Mas como era uma curiosa assumida,não se contentava somente em ler a obra, ela se interessava pelo autor. Queria saber se era realmente autor ou  uma apaixonada autora, e se a história era verídica ou somente fruto de uma imaginação enamorada.
     Ela saiu do banho com suas dúvidas ainda por resolver, colocou uma roupa limpa e estendeu a toalha. Começou a escovar os cabelos parando assim que percebeu a quantidade de fios que iam caindo. Isso é estresse dona Clarisse! Pensou consigo. Ou como sua avó dizia "Falta de feijão!". Recolheu os fios castanhos do assoalho e os emaranhou para jogar fora. 
      Terminou de se ajeitar colocando um casaco cor vinho e pegado sua bolsa. Foi para a copa onde a mesa já estava posta e se sentou ao lado de Camila . "Vai de ônibus Clarisse?" Foi recepcionada ."Sim." Respondeu enquanto pensava com ironia:  Não deveria incomodar a falta de um "Bom Dia". Mas incomoda!. Não que Clarisse e Camila brigasse muito, mas acontece que sua irmã mais velha era, simplesmente, mais velha.      
          As duas começaram a se servir de arroz e carne recém cozida. "Não vão comer feijão?", dona Dolores chegou um pouco depois trazendo consigo uma vassoura de piaçava.
"Estamos colocando mãe." Camila pegou a concha e a mergulhou na panela.
        Comeram em silêncio, o que deu brecha para que os pensamentos de Clarisse retornassem a questão da história. Ela sempre sonhava com as histórias que lia, queria acrescentar pensamentos seus aos contos, queria sair para tomar um chá com aquele personagem que cativara seu coração, levava a sério cada emoção relatada e as vezes as sentia como se ela que vivesse.
         Terminou a comida sem perceber, se despediu da irmã e da mãe com um abraço e foi para o ponto de ônibus mais próximo. No caminho também divagou sobre a história com as mesmas perguntas importunas.
          O automóvel chegou rapidamente, fugindo do usual, situação que não é de se reclamar. As portas abriram e se criou, como que por mágica, uma fila. As pessoas iam subindo no ônibus enquanto esse expelia sua fumaça que atacava os que ainda estavam do lado de fora.
           Clarisse entrou no veículo, passou seu cartão funcional na maquina, e depois do aviso verde foi conseguir um lugar. Se sentou perto da janela de onde poderia observar o movimento das pessoas enquanto se aprofundava em seus questionamentos. O assento ao seu lado estava vazio, o que a deixava confortável, pois desse modo poderia encostar a cabeça no vidro e manter os olhos como tal:vidrados,sem parecer estranha.
      Mas depois de quase cinco paradas, alguém sentou ao seu lado. Ela foi distraída de sua reflexão pelo perfume que vinha do jovem, um cheiro forte e marcante. Ela o olhou de relance, os olhos do garoto eram sábios e gentis,apesar de terem a aparência cansada. Ele usava uma camisa branca com os dizeres"Tão longe está de nós a poesia como nuvem nos rouba a luz do dia.", então Clarisse percebeu que seu olhar de relance se transformara em uma intensa observação, e o garoto também devia ter percebido pois se virou para encara-la. Ela desviou seu olhar abaixando a cabeça e mirando o bloco de anotações que o menino carregava. Uma tímida assumida.






Notas: *Abeto: Madeira utilizada na fabricação de violinos.

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